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Tiros que tentaram acabar com o símbolo da luta

Quatro tiros na cabeça. Quatro tiros terminaram com a vida de Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco, de 38 anos. Atingiram os sonhos, as ideias, e tiraram do Brasil uma mulher que, até hoje, é sinônimo de luta. Mais de um ano depois da morte da quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, ainda não se sabe quem mandou matar a filha da Maré. Há suspeitos presos e uma intrincada investigação em curso. A dor da perda e a indignação com o crime ainda sem solução foram transformadas em resistência. Mesmo sem Marielle, a luta da defensora dos direitos humanos não foi interrompida, pelo contrário, ganhou força.

Mulheres que, assim como Marielle, dedicam a vida para assegurar os direitos humanos no Brasil, continuam a trajetória da vereadora. Ao contrário da crença popular de que a mulher é o “sexo frágil”, representatividades femininas batalham com força e determinação para garantir que os direitos expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) sejam respeitados. Mas, segundo elas próprias, esta não é uma missão fácil.

A história de amor de Marielle Franco e a arquiteta Mônica Benício teve início há 15 anos. A amizade se tornou paixão. Quando Marielle decidiu se candidatar a vereadora do Rio (PSOL-RJ), Mônica apoiou, mas, até então, não tinha forte atuação na defesa dos direitos humanos. Depois do dia 14 de março de 2018, quando o grande amor de sua vida foi calado por quatro tiros, a arquiteta passou a ocupar importante lugar na militância.

 

Exclusiva

 

Em entrevista exclusiva para a produção deste trabalho, Mônica Benício contou parte de sua história e de Marielle. Atualmente Mônica trabalha na Liderança do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na Câmara dos Deputados, em Brasília, e nas horas não tão vagas, percorre o mundo levando o ativismo que assumiu impulsionada pela morte da companheira. “Marielle era uma defensora dos direitos humanos que tinha no próprio corpo e na história de vida todas as pautas que defendia, enquanto mulher, negra, favelada, lésbica. Então é muito simbólico que se tenha em uma defensora dos direitos humanos todas essas pautas das ditas minorias”, disse Mônica.

 

Depois da execução, o nome e imagem da vereadora percorreram o mundo, se tornando uma representatividade para os defensores de direitos humanos. A família da vereadora se reuniu com o papa Francisco e a fotografia publicada nos principais veículos do Brasil e do mundo. Com essa disseminação da história de vida de Marielle, o ativismo e as pautas que representava foram levados para fora do Brasil. Em todas as viagens nacionais e internacionais que faz para militar, Mônica carrega no colo a boneca de pano chamada Mariellinha, uma homenagem à Marielle e, também, uma forma de manter por perto a mulher que esteve com ela durante anos. “Ver a imagem da Marielle repercutindo dessa forma é dizer que estamos cansados das barbáries que acontecem e que a gente não vai mais aceitar. Hoje nós fazemos um movimento de resistência para que seja reconhecida a luta que Marielle representa e não a Marielle em si”, afirmou Mônica.

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TIROS QUE TENTARAM ACABAR COM O SÍMBOLO DA LUTA 

Marielle Franco foi morta em março de 2018, mas a luta dela ganhou força

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"Hoje a Marielle se tornou um símbolo tão grande que ela extrapola a própria história de vida que teve e se torna a representatividade de uma mudança urgente que a gente precisa na sociedade hoje"

- Mônica Benício, viúva de Marielle Franco.

Sementes

Marielle, além de árdua defensora dos direitos humanos, também era socióloga. Foi eleita vereadora em 2016 com 46 mil votos. Como mulher, mãe, negra, lésbica e cria da favela, lutava pelos direitos de todos que não se encaixam nos padrões sociais e, por isso, são marginalizados. Há um ano e meio tentaram calar a voz de Marielle, mas sua luta se multiplicou. Marielle virou semente e, nas eleições de 2018, algumas delas brotaram pelo Brasil.

 

Talíria Petrone, Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, quatro mulheres negras, amigas de Marielle, eleitas, no Rio de Janeiro, deputadas. Todas filiadas ao PSOL. Talíria Petrone, com 107 mil votos, foi eleita deputada federal. As demais, deputadas estaduais no Rio de Janeiro. Após o resultado das urnas, Talíria comemorou no Twitter a vitória. “Três mulheres negras do PSOL eleitas para a Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro]. Três assessoras de Marielle Franco. Três sementes que brotaram do asfalto”, disse a deputada federal. “Que orgulho!.”

 

Sementes também brotaram em outros estados brasileiros. A professora Olívia Santana (PCdoB-BA) se tornou, com quase 58 mil votos, a primeira deputada estadual negra da Bahia. Em Belo Horizonte, a vereadora Áurea Carolina se elegeu, com mais de 162 mil votos, como deputada federal. A chapa coletiva Juntas (PSOL), em Pernambuco, recebeu cerca de 40 mil votos e, com isso, levou cinco mulheres pernambucanas à assembleia legislativa do estado. Uma dessas mulheres é Robeyoncé Lima, mulher negra, transexual e a primeira advogada a ter o direito de usar o nome social na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do estado.

 

São Paulo, Distrito Federal e Rio de Janeiro também tiveram ‘Marielles’ eleitas. “Eu penso que ter Mônica Francisco, Dani, Renata, ocupando o espaço da Alerj, Talíria Petrone e Áurea Carolina na Câmara dos Deputados e muitas outras pelo Brasil, inclusive mulheres negras trans, é sem dúvida nenhuma uma resposta de resistência para dizer que a gente não vai aceitar a noite de 14 de março só como um marco de violência, mas principalmente como marco de resistência e ressignificar a dor e toda barbárie daquela noite”, garantiu Mônica Benício.

 

“A gente tinha todos os motivos para dar um passo para trás, sentir-se acuada, sobretudo mulheres negras que estão disputando o espaço da política, um espaço de poder que é historicamente construído por homens brancos que sempre mantiveram tudo que a Marielle representava dentro dessas casas legislativas”, observou Mônica referindo-se à noite de 14 de março de 2018, na qual Marielle Franco foi morta ao lado do motorista Anderson Pedro Gomes, após reunião política no Rio de Janeiro.

 

Presente e futuro

 

Mônica hoje dedica a vida para defender os direitos humanos. Depois de todo sofrimento causado pela noite de 14 de março, ela transformou a dor em luta. As pautas feministas de LGBT são as principais frentes de atuação da ativista. “O feminismo para mim é uma pauta fundamental, é start de revolução. Enquanto mulher lésbica, a pauta LGBT é muito importante, discutir lesbofobia, discutir LGBTfobia, é muito importante afinal de contas o Brasil é o país que mais mata essa população LGBT”, admitiu a viúva de Marielle. Além disso, Mônica também é uma aliada ao movimento antirracista. “Como já diria Angela Daves, em um país racista, não basta não ser racista, tem que ser antirracista. Então é muito importante e urgente estar somando a esta luta”, destacou a arquiteta.

 

Mesmo não sendo uma luta fácil, Mônica resiste e leva para o mundo as pautas que o amor de sua vida defendeu. “Eu venho em um número de viagens nacionais e internacionais exaustivo, porque a gente chega a mais de um ano sem saber quem foi que mandou matar a Marielle”, contou. Para ela, a militância começou despretensiosamente e, hoje, Mônica se tornou porta-voz das minorias. “Isso tudo começou para mim como um projeto muito pessoal, afinal de contas foi minha esposa que foi assassinada e não me responderam quem foi que mandou matar, então era uma dor muito pessoal, um sentimento de justiça muito particular. Para mim não era a vereadora, era a minha mulher”, disse a ativista.

 

Para o futuro, Mônica espera continuar batalhando pelos direitos daqueles que são, diariamente, invisibilizados e marginalizados. “Quando olho para o horizonte eu enxergo revolução. Para mim hoje, sobretudo com o movimento feminista, existe uma revolução em curso”, opinou Mônica. “Eu acho inclusive que a noite de 14 de março quando a Marielle foi executada da forma que foi e o mundo se choca quanto a isso, diz muito sobre o Brasil que realmente somos, que é racista, que é machista, que é misógino, que é LGBTfóbico. Mas também toda essa repercussão diz muito sobre a urgência de modificação que a gente precisa e que a gente está construindo”, analisou a defensora dos direitos humanos.

Fonte: Arquivo Pessoal

Fonte: Arquivo Pessoal. Da esquerda para direita: Marielle e Mônica. "Outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração", escreveu Mônica em postagem nas redes sociais

"Eu acho que hoje não é gratuito a imagem da Marielle ter virado um símbolo de resistência, e, para mim, de esperança, isso é ressignificar a noite do 14 de março e não aceitar só como um marco de violência e barbárie, mas sim dizer que não só a vida da Marielle não foi em vão, mas que também a morte não será"

- Mônica Benício, viúva de Marielle Franco.

Três perguntas para Mônica Tereza Benício

Como a sociedade organizada pode impedir novas tragédias como a que executou Marielle?

É muito difícil. A gente tem hoje uma conjuntura política que não favorece a vida dos defensores dos direitos humanos, das mulheres, da população LGBT, dos negros, dos índios. A gente precisa, mais do que nunca, estar atento ao que de fato acontece no cenário político. O Brasil tem o discurso do país que todo político é corrupto, que isso nunca vai mudar e esse sentimento, esse conformismo com essa sujeira toda acaba sendo muito interessante para quem está no poder. A gente precisa desconstruir esse sentimento, a população precisa acompanhar o que de fato acontece e não se deixar influenciar por fakenews de grupos de Whatsapp. Não por acaso, nesses tempos midiáticos, a gente elege um presidente através desses meios da forma como foi. Acho que a gente tem que ter muito cuidado, a conjuntura política não é favorável para a maioria da sociedade hoje e se não estivermos muito atentos e querendo modificar isso, a gente vai continuar morrendo.

Como a juventude pode colaborar para construir um Brasil mais igualitário?

Essa transformação de fato vai vir pela mão da juventude. A minha luta, por exemplo, eu tenho certeza que não vou ver o resultado concreto do que eu to buscando, que é a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Então o que eu falei de estar preocupado com a política em si, atento ao que acontece, para mim, é fundamental. A gente precisa de uma juventude interessada na construção de um país melhor, menos midiática, menos revolucionária de Instagram e Facebook. Óbvio que as redes sociais são importantes, mas precisamos ter isso na nossa construção diária efetiva, inclusive no próprio cuidado em solidariedade ao outro. Nós temos vivido tempos de discurso de violência e de ódio muito grande, de uma desumanização da sociedade muito grande, então a gente precisa hoje de uma juventude que seja mais humanizada, que esteja interessada em construir com solidariedade, empatia, em um campo horizontal e coletivo e não esse modelo velho desse Brasil tão classista, racista, misógino, LGBTfóbico que a gente tem.

A senhora consegue imaginar o que a Marielle diria neste momento sobre o próprio caso e outras tragédias que assolaram o país nos últimos dias, como Brumadinho e o Centro de Treinamento do Flamengo, entre outras)?

A Marielle era defensora de direitos humanos há duas décadas e a política dela era uma política diferenciada. Ela trabalhou como coordenadora da comissão de direitos humanos na Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] e com a escuta de muita violência e de muita dor, fosse atendendo as mães dos policiais que eram assassinados ou fosse a mãe de um traficante que era assassinado. Enquanto defensores de direitos humanos a gente compreende que nenhuma vida vale mais que a outra e que a gente não pode hierarquizar dor, que são processos diferentes, individuais e particulares. Então não teria como Marielle ser indiferente a um caso semelhante ao dela, sobretudo se tivesse a repercussão que está tendo, não teria como ela ser indiferente a Brumadinho, justamente porque ela tinha empatia, porque tinha solidariedade no olhar dela. Sem dúvida nenhuma ela estaria buscando uma modificação de todo esse índice de violência que continua subindo porque foi isso que ela sempre fez a vida inteira.

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Direitos para todos

A morte de Marielle gerou extensas discussões nas redes sociais sobre o que são os direitos humanos e para que eles servem. Os direitos humanos são para todos, não só para “humanos direitos”, como costumam dizer. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no primeiro inciso do segundo artigo diz que todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos estabelecidos na declaração “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

 

Mas, nem sempre é assim e, para alguns defensores dos direitos humanos, a luta é mais árdua. É o caso da psicóloga Elisa Walleska Kruger, defensora dos direitos das pessoas com problemas mentais que cometem algum crime, os comumente chamados de “loucos infratores”. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, apontou que 57% da população de grandes cidades brasileiras concorda com a frase "bandido bom é bandido morto". Esse discurso, que viralizou nos últimos anos, fez com que a população criasse um imaginário de que “direitos humanos só servem para defender bandido”.

 

Em entrevista exclusiva para este trabalho, na luta em defesa dos direitos humanos, Walleska se deparou incontáveis vezes com pessoas que propagam esse imaginário. “Se tornou até um jargão aqui no Brasil: ‘Esse pessoal dos direitos humanos’, de tão marginalizados que nós somos”, disse a ativista. Para ela, somente quem não conhece o que realmente são os direitos humanos despreza a atuação dos ativistas. “Na verdade, quem fala uma coisa dessas demonstra uma profunda ignorância no que se refere ao conceito de direitos humanos. Direitos humanos são direitos universais que foram constituídos através de grupos de trabalho na ONU, que acabou fazendo a declaração universal de direitos humanos”, disse.

 

Com a opinião pública desfavorável, lutar para que pessoas que cometem delitos tenham seus direitos assegurados se tornou cada vez mais difícil. No decorrer da trajetória de Elisa, ela, inúmeras vezes, sofreu diversos tipos de agressões e retaliações por conta do ativismo. “Eu acho que esse é um triste caminho que todos os defensores de direitos humanos passam. Eu jamais fui agredida por um preso, nunca, nem verbalmente, nem um mínimo desrespeito, deselegância, falta de educação, jamais; nem pessoas portadoras de transtornos mentais, que nós preferimos chamar de pessoas com sofrimento psíquico grave. Nunca fui atacada. Em compensação, pela sociedade, por pessoas que trabalham no sistema prisional, em tribunais, nas redes sociais, em palestras, nas salas de aula”, contou a psicóloga.

 

“Infelizmente, a sociedade acha que pode se colocar acima dessas determinações internacionais e dizer ‘fulano não é humano’, ‘essa pessoa não merece’, mas isso não cabe a ninguém dizer, isso é uma determinação internacional que deve ser cumprida por todos os países. E nós - defensores - não defendemos apenas pessoas com transtornos mentais e nem pessoas em conflito com a lei. Eu defenderia qualquer pessoa”, afirmou Walleska. A psicóloga assegurou que qualquer pessoa que tenha os direitos violados será protegida pelos direitos humanos, por todo mundo que trabalha com isso. “Acontece que esses direitos geralmente são desrespeitados contra pessoas negras, pardas, índios, mulheres, população LGBT, pessoas com transtornos mentais severos, pessoas em conflito com a lei”, frisou.

 

Luta antimanicomial

 

Os manicômios judiciários são estabelecimentos destinados a pessoas com transtornos mentais severos que cometem algum crime, ou seja, em conflito com a lei.  O primeiro manicômio judiciário surgiu na Inglaterra do século XVII, no Asilo de Bedlem, onde foi aberta uma ala destinada aos criminosos diagnosticados com problemas mentais. Logo depois, diversos outros asilos abriram seções para os criminosos com diagnóstico de doença mental.

 

​No século XX, os primeiros hospícios chegaram ao Brasil como uma forma de tratar problemas sociais de todos os tipos. Atualmente, estima-se que 26 estabelecimentos são especializados no tratamento de criminosos com distúrbios mentais. Na região Sudoeste do país é onde está localizada a maioria, com 38%, seguida do Nordeste com 31%. Na Região Sul e Norte estão concentrados 12% dos estabelecimentos, o Centro-Oeste aparece com 8% e Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo aparecem com apenas três unidades cada.

Manicômios

 

 

No Centro-Oeste, mais especificamente no Distrito Federal, a Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP) foi inaugurada em 1999 e fica localizada na Região Administrativa do Gama, dentro da Prisão Feminina de Brasília. Apesar de estar sediada nas mesmas instalações de um presídio feminino, a ATP-DF é habitada, principalmente, por homens. Ao todo, são 90 pacientes do sexo masculino e apenas sete do sexo feminino. De acordo com o censo “Inspeção aos Manicômios”, realizado em 2011, aproximadamente 17% dos indivíduos internados não deveriam estar ocupando celas, por não oferecerem mais riscos à população ou por terem sentença de desinternação, medida de segurança extinta ou internação sem processo judicial.

 

Embora a Ala de Tratamento Psiquiátrico do DF sair à frente da maioria dos Estados Brasileiros, por oferecer um tratamento psicológico, possibilitando, de certa forma, a recuperação da saúde mental do interno, ela está longe de ser o ideal. O problema dos manicômios no Brasil é antigo. Segundo Marcus Furtado, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), um relatório produzido pelo Conselho Federal da OAB, em parceria com o Conselho Federal de Psicologia, em 2004, mostrou um cenário desolador: todas as 38 unidades psiquiátricas vistoriadas em 16 estados e no Distrito Federal apresentaram violações à dignidade humana.

 

O sistema prisional para pessoas em medida de segurança se torna, na maioria dos casos, prisões perpétuas. Diversos fatores contribuem para que, quando uma pessoa com transtorno mental adentra uma Ala de Tratamento Psiquiátrico, um Hospital de Custódia e Tratamento, ela não consegue mais sair. “Nós temos casos de prisões perpétuas aqui no Brasil porque, quando essa pessoa é “custodiada”, a família não presta apoio. Ao longo do tempo que essa pessoa fica cumprindo medida de segurança, ela tende a perder todos os vínculos sociais e familiares. Um dos critérios para que essa pessoa seja solta é que a família o receba aqui fora, que monitore, mantenha um tratamento, muitas vezes isso é impossível”, afirmou Walleska.

 

Outro critério seria adotar, no Brasil, uma rede adequada de serviço de saúde mental para atender o custodiado quando ele sair da medida de segurança. Segundo Walleska, alguns transtornos mentais que são de longa duração ou perenes, como diabetes ou pressão alta, não vão ter uma cura, mas têm um tratamento necessário. “Mas o nosso sistema de saúde é muito ruim nesse aspecto também. Então isso faz com que, muitas vezes, a pessoa vai ficando ali porque não tem o que fazer com ela”, revelou.

 

Movimentos

 

Em decorrência do cenário de violação aos direitos humanos sofrido pelos usuários do sistema de saúde mental e o frágil histórico no tratamento da doença mental no Brasil, surgiram movimentos para lutar pelos direitos desses pacientes. O Movimento da Luta Antimanicomial tem como precedente o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), que surgiu no contexto do regime militar. Inicialmente o movimento atuava nos pequenos cenários de debate sobre a questão das condições precárias do sistema de saúde no país. O movimento batalha pelos direitos das pessoas que sofrem de doença mental e o combate ao isolamento de tais pacientes em nome de supostos tratamentos, contando com a participação ativa e efetiva dos usuários dos serviços de saúde mental e qualquer interessado em defender uma postura de respeito aos diferentes modos de ser e a transformação da relação cultural da sociedade.

 

A luta é para a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos tradicionais por serviços abertos de tratamento e formas de atenção dignas e diversificadas. Essa substituição implica na implantação de uma ampla rede de atenção em saúde mental que deve ser competente para oferecer atendimento aos problemas da população afetada e apoio às famílias. Além disso, deve se articular aos serviços das áreas de ação social, cidadania, cultura, educação, trabalho e renda.

 

O movimento existe há pelo menos 30 anos. Ao longo desse período, houve avanços relevantes para a luta, como a criação da Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. A distribuição dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), estabelecimentos que realizam o atendimento às pessoas em sofrimento mental, sem mantê-las em isolamento, também foi uma grande conquista. Mas ainda há muito que fazer, o modelo existente hoje não é o ideal.

 

Um dos principais entraves quando o assunto é o tratamento de pessoas com transtornos psíquicos diz respeito à opinião pública. Para Walleska, o primeiro passo para alcançar um modelo de tratamento adequado, seria investir na educação da população, no sentido de explicar para os cidadãos o que é o transtorno mental. “Essas pessoas não são mais violentas que a maioria das pessoas. As pessoas se enganam ao achar que, por aquele indivíduo ter um transtorno mental, ele vai ser mais violento, mas os estudos internacionais mostram que não. Se houvesse uma vontade da sociedade de realmente resgatar essas pessoas, aí sim surgiria o interesse político-partidário de investir recursos na construção de unidades adequadas”, disse.

 

Vida e trajetória

 

Otimista, corajosa, motivada e leal. Seguindo a filosofia de vida de não violência e o respeito aos direitos humanos, Elisa Walleska Krüger Alves da Costa, é doutora em psicologia forense e trabalha com pessoas em situação de aprisionamento no sistema carcerário, pessoas com transtorno mental e também na área de direitos humanos com feminismo islâmico.

Optou pela psicologia porque desde pequena nunca acreditou em explicações óbvias e fáceis e sempre quis entender o que se passa na mente de uma pessoa. “Tenho um caso grave de transtorno mental na minha família. Quando criança, ficava observando e queria entender o que se passava com aquela pessoa. A psicologia sempre me fascinou e, depois, com o passar dos anos, o direito penal também, que é a área que está ligada à psicologia forense. A justiça sempre me falou à alma”, afirmou.                         

 

Vida profissional

 

Walleska perdeu a mãe muito cedo e, por esse motivo, foi morar com a família na Suíça, onde cursou o ensino médio. Ainda na Suíça, se interessou por Administração de Empresas e decidiu seguir carreira.  “Lá eles não têm tantos cursos superiores como aqui, a maioria são cursos de tecnólogo e o que tinha vaga para mim na época era Administração e Marketing’’, revela. O primeiro emprego de Elisa foi um estágio na área de Administração, em que trabalhava com Administração de Projetos. Mesmo sonhando em estudar psicologia, ela só iniciou o curso depois de voltar para o Brasil.

 

Após entrar na Universidade de Brasília (UnB), onde fazia dupla graduação em Psicologia Clínica e Bacharel em Psicologia, estagiou no Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, hospital psiquiátrico onde atendia criminosos que chegavam em surto. Desde o primeiro caso, apresentou interesse pela área e assegura que sempre conversou com os pacientes como conversava com qualquer outra pessoa. Ela procurava saber a história de vida, o que estudou, o que gostava de fazer, não focava no rótulo de assassino, pedófilo, estuprador. Assim, Walleska estabelecia uma relação de confiança, em que os criminosos se sentiam à vontade com ela e ela com eles.  

 

Durante a faculdade, decidiu que queria trabalhar com psicopatologia e psicodiagnóstico. Quando foi chegando ao fim da graduação, especializou-se no Método de Rorschach, técnica de avaliação psicológica pictórica, comumente denominada de teste projetivo, ou de método de autoexpressão, que consiste em dar respostas sobre com o que se parecem as dez pranchas com manchas de tinta simétricas e, a partir das respostas, procura-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo. Após a especialização, Walleska iniciou, em 2009, o mestrado na UnB em avaliação psicológica de pessoas com transtornos mentais graves e, depois, começou o doutorado em psicologia forense com o tema “A falência da medida de segurança”, trabalhando, assim, em conjunto com o direito penal. Buscando se aprofundar cada vez mais  na área, Elisa fez cursos em São Paulo, em Oxford, no King’sCollege de Londres, no Chile, e em diversos outros lugares, com o intuito de tornar-se perita criminal na área de psicologia forense.

 

A ativista viu a necessidade de ter um conhecimento mais profundo sobre psicopatia e temas afins. Em 2012, criou com seu orientador, Illeno Izídio da Costa, o Grupo Persona, onde são desenvolvidas pesquisas, intervenções e estudos científicos na área de criminalidade, violência, perversão e psicopatia. O Persona começou com uma equipe de cinco pessoas que se propuseram a sentar e estudar, e hoje são mais de 60. “Temos alunos de outras universidades e de outras áreas além da psicologia, porque a gente entende que a violência e o crime precisam ser estudados por várias disciplinas.”

 

Os maiores desafios encontrados em sua profissão, segundo Walleska, são aqueles que a julgam por defender os marginalizados e a odeiam por isso. A opinião pública também é um obstáculo que ela diz ter que enfrentar. “É difícil quando tenho que conversar com um juiz, com um policial, que discorda da forma que penso. Já fui agredida verbalmente por isso. O mais pesado é conversar com gente que não entende nada do que eu faço, cria uma ficção e me chamam de machista”, desabafou. Mas, o verdadeiro desafio enfrentado pela psicóloga está, como ela mesma diz, na bagunça do sistema penitenciário brasileiro.

 

Inspiração

 

Em termos de inspiração, Walleska nutre uma especial. Mãe de quatro filhos, a segunda cresceu e foi estudar Direito, tornou-se advogada criminalista e defensora dos direitos humanos, a partir de então começaram a trabalhar juntas. Aos 28 anos, foi diagnosticada com câncer e não resistiu. Momentos antes de perder a vida, ela pediu à mãe: que escrevesse a história dela e que não parasse com o trabalho na defesa dos direitos humanos. Walleska conta que esta filha, no leito de morte, falou que estava deixando seu legado para que ela o continuasse. “Essa frase dela me faz levantar todos os dias de manhã e não desistir”, contou emocionada.

 

Walleska assegura que, ainda deseja ver o Brasil sem tantas prisões e sem tantos manicômios. Segundo a defensora dos direitos humanos, um dos sonhos que nutre é que, daqui a 10 anos, continuasse o que está fazendo atualmente, mas com todos os presos em liberdade. “Gostaria de estar atendendo pessoas em conflito com a lei, com transtorno mental, mas que eles não estivessem atrás das grades”, ressaltou.

 

Juventude e direitos

 

No movimento pela defesa dos direitos humanos, a juventude tem atuação marcante. Cada dia mais, os jovens se mobilizam para garantir que os direitos básicos dos humanos, os direitos da dignidade humana, sejam assegurados para todos. Nailah Neves Veleci, 27 anos, é mestre em direitos humanos e cidadania, com forte atuação na defesa dos direitos humanos da população negra.

Nailah nasceu em meio à militância, cresceu vendo o pai lutar para desfazer o mito da democracia racial nos anos 80. Na juventude, se especializou em direitos humanos para garantir a dignidade básica da população negra. Além disso, Nailah também é de povos de terreiro, onde é identificada pelo nome de Onãomi, e luta contra a intolerância religiosa.

A jovem exerce um ativismo acadêmico, com atuação em palestras, conferências, na pesquisa científica e produção de conhecimento sobre direitos humanos e dados acerca das violações de direitos sofridas pela população negra e de religiões de matriz africana. “Eu uso da estratégia de disputar conceitos para fazer com que esses conceitos cheguem para políticas públicas, chegue para a mídia, que é a forma de disputar uma narrativa”, explicou Nailah.

Em relação à atuação no campo racial, a ativista não faz distinção entre segmentos e, na luta pela igualdade de direitos, defende todos os seus pares. “Não tem como eu fazer o recorte e dizer que luto, por exemplo, pelo feminismo negro, crianças e juventude negra, porque, querendo ou não, a minha luta abarca tudo”, disse Nailah. “Quando eu vou falar de genocídio, por exemplo, e pego os dados de políticas públicas que é onde eu atuo, a gente vê que as mulheres negras são as que mais sofrem violência, as mulheres negras são as que mais morrem em hospitais, os homens negros que são os mais encarcerados. Então acaba sendo global toda a minha disputa por direitos humanos”, exemplificou a ativista.

Como mulher, negra e militante, Nailah observa, no dia a dia, que precisa enfrentar mais obstáculos do que os defensores homens e que também se torna um alvo mais fácil para os ataques. “Por ser mulher, eu percebo que me torno um alvo fácil. Eu percebo como o tratamento é diferente. Por exemplo, quando eu vou pesquisar sobre milícias e fazer relatórios sobre violações de direitos, eu vejo que o tratamento que a polícia dá para um consultor homem é totalmente diferente do tratamento para uma defensora mulher”, desabafou.

“Existem obstáculos para ser uma defensora dos direitos humanos mulher, sendo que a gente precisa de defensoras porque muitas das vítimas não vão falar e se abrir com homens, exatamente por conta de toda essa construção social”, contou Nailah Neves.

Nós temos o famoso discurso que diz ‘direitos humanos para humanos direitos’, mas quem vai definir quem são esses humanos? Quem está definindo é que está no poder e quem está no poder não considera todos nós humanos

- Nailah Neves Veleci, mestre em direitos humanos e ativista.

A atuação jovem está presente em diversas frentes da defesa pelos direitos humanos: movimento feminista, população negra, indígenas, quilombolas, comunidade LGBT+ e todos aqueles que são marginalizados e têm os direitos negados. Thaís Oliveira, 26 anos, é uma das jovens que fazem parte do movimento de mulheres Olga Benário e luta, principalmente, pela igualdade de gênero.

O movimento de mulheres Olga Benário é um movimento feminista marxista de projeção nacional e, dentre as frentes de atuação, Thaís também luta pela  libertação do povo trabalhador. “O movimento tem o objetivo de trabalhar pela libertação do povo trabalhador, das mulheres negras periféricas. Então a gente atua nacionalmente com medidas que vão minimizar esse sofrimento dessa parcela da população”, contou a estudante. “O que eu faço é basicamente ir atrás dos nossos direitos, porque eles não vão chegar sem a gente lutar. A gente conquista na marra mesmo, a gente aprendeu isso e é isso que a gente se dispõe a fazer”, comentou Thaís.

Dentro da atuação pela igualdade de gênero, Thaís e as companheiras buscam também leva a reflexão para as pessoas que ajudam. “Não só saber a história da nossa opressão ou os motivos, mas também da gente relembrar as mulheres que fizeram parte dessa luta. Historicamente nós temos mulheres de muito respeito, de muita referência”, disse a militante.

 

A jovem começou na militância a partir de uma indignação com o machismo que vivenciava diariamente na graduação de engenharia que cursava. “Eu estudei engenharia antes de ingressar na comunicação social. Engenharia é um curso extremamente machista, homocentrado, os professores são machistas e eu fui percebendo o meu incômodo com diversas questões e foi se formando um coletivo dentro da universidade, entre as mulheres da engenharia que estavam fartas”, relembrou Thaís. A partir de então a jovem passou a dedicar a vida em busca da igualdade de direitos e ingressou no movimento Olga Benário.

 

No dia 14 de março de 2019, data em que completou um ano do assassinato de Marielle Franco, o movimento Olga Benário organizou atos de protesto por diversos estados brasileiros. Em Brasília, Thaís foi uma das mulheres que esteve à frente da intervenção que mudou o nome da ponte Costa e Silva, no Lago Sul, com um adesivo, para ponte Marielle Franco. “O 14 de março para nós é um dia muito caro porque é o dia do assassinato de uma mulher negra, favelada, que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente. Como uma forma de protestar esse assassinato brutal que até hoje não teve uma solução, decidimos adesivar simbolicamente a ponte como ponte Marielle Franco”, revelou Thaís.

 

Assim como Marielle era jovem, a atuação da juventude representa força para o movimento em busca dos direitos humanos. Olga Benário começou a militância com 15 anos de idade, e hoje é símbolo da busca pela igualdade de gênero, assim como Marielle hoje se tornou símbolo de resistência. “Eu comecei jovem, ainda sou jovem e vejo muita gente jovem com o maior nível possível de sangue nos olhos. A juventude na verdade é uma escola para o depois”, afirmou Thaís Oliveira.

 

“Nos direitos humanos, as pessoas jovens têm muito a aprender com os mais velhos, mas também têm muito a dar de energia. É uma via de mão dupla. A atuação jovem é importante pela necessidade de ter um movimento pulsante, um movimento ativo, que topa tudo e acaba renovando a energia dos mais velhos”, completou Thaís.

Opinião pública

A opinião popular nem sempre é favorável aos diretos humanos e à atuação dos defensores. Para saber o que algumas pessoas pensam, a reportagem perguntou a 20 pessoas: “qual a importância da atuação de mulheres na defesa dos direitos humanos?”. Dessas 20 pessoas, sete foram homens. A maioria das respostas foi favorável à atuação das mulheres:

Fernanda Rosa Abreu, 57 anos, engenheira.

“Acho que a atuação de homens e mulheres é muito importante. É um assunto que todos, independentemente da orientação sexual, devem defender”.

Ana Beatriz Catelan, 31 anos, servidora pública.

“As mulheres precisam estar na defesa dos direitos humanos porque trazemos para a luta recortes diferentes daqueles sempre colocados em voga como importantes. Nós damos luz a questões comumente ignoradas pelos homens, como por exemplo, a luta por igualdade de gênero, por creches, por direitos trabalhistas que protejam as grávidas, leis eficientes que combatam o feminicídio, entre outros direitos que só são pensados quando você depende deles pra existir”.

Antonio José Barroso de Oliveira, 58 anos, fiscal de serviços.

“No Brasil, direitos humanos só protege bandidos, enquanto o cidadão de bem fica privado de seus direitos conforme a constituição. Faltam médicos em hospitais, professores em escolas, estes professores muitas vezes são mal remunerados, saneamento básico, etc. Os que defendem os direitos humanos viram as costas pra isso, se preocupam mais se um assaltante, que tirou a vida de um cidadão, esta sendo bem tratado na prisão e oferecem até ajuda psicológica. Me dá náuseas quando ouço falar em direitos humanos neste país.”.

Vitor Neves Ergang, 21 anos, estudante.

“A importância na atuação nos direitos humanos é grande independentemente de quem a faz”.

André Franco Arruda, 26 anos, bancário.

“É de suma importância ter opiniões femininas num assunto tão delicado e frágil. Por ter essas características os homens têm ideologias fracas no que diz respeito. A mulher tem mais discernimento nessa defesa, talvez pela sensibilidade, bondade, respeito, características essas que as mulheres têm mais que os homens. Quando trata esse assunto com um homem, o mesmo só pensa em direitos do bandido/presidiário. Ou seja, falta até sabedoria da parte. Logo, quando trata o assunto com uma mulher, elas pensam em família, saúde, direito à defesa jurídica, entre outros afins. Portanto, as mulheres são importantes para a defesa dos direitos humanos”.

Sandra Maria Silva Siqueira, 61 anos, professora.

“É primordial nossa atuação sempre, principalmente nesses tempos difíceis, em que estamos assistindo tanta violência contra a mulher”.

Reportagem desenvolvida no primeiro semestre de 2019 como projeto final para a conclusão do curso de graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo,  na Universidade Católica de Brasília. Trabalho orientado pela professora Renata Giraldi. 

 

REPORTAGEM

Aline Brito

ILUSTRAÇÃO

Lucas França

FOTOS

Arquivo Pessoal

 

LINHA DO TEMPO

Aline Brito

Benny Silva

DIAGRAMAÇÃO

Aline Brito

EDIÇÃO DE VIDEO

Aline Brito

ORIENTAÇÃO

Profª Drª Renata Giraldi

Email para contato: alinebrito. jor@gmail.com

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